segunda-feira, junho 14, 2004

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Crónica de uma vitória não anunciada

Nas entrelinhas de diversos discursos dos dirigentes da coligação, derrotada nas eleições de ontem, ficava implícita a referência à morte de Sousa Franco, como factor que teria concorrido a favor do estrondoso resultado obtido pelo Partido Socialista. Devo, a este propósito, recordar aos mais velhos e informar os mais novos, que aquando do trágico acidente que vitimou Sá Carneiro e Amaro da Costa - que muito mais chocou o povo português do que a morte recente de Sousa Franco -, não foram favoráveis à então coligação entre o PSD e o CDS, os resultados nas eleições pelas quais aqueles dirigentes perderam a vida. Com efeito, o candidato presidencial Soares Carneiro, apoiado pela então AD, perdeu as eleições contra o candidato Ramalho Eanes. Apesar da reacção emocionada e injustificável de alguns apoiantes da AD, contra o General Eanes, e independentemente do ambiente emotivo criado, compreensivelmente, pela morte abrupta e inacreditável de dois dos principais lideres políticos da altura.

Tentar justificar a derrota que sofreram, ontem, com os estados de espírito do final da campanha, seria não só um erro da coligação, como uma evidente falta de um mínimo de decoro e ombridade política, a todos os títulos lamentável. Mas não duvido muito que alguns dirigentes e muitos comentadores comprometidos com a coligação, que ontem não terão tido a coragem para o fazer a quente, venham agora, de forma mais fria e elaborada, apresentar álibis para a fragilidade e falta de credibilidade em que os eleitores os colocaram, com o seu voto nas urnas. Seria apenas mais uma atitude lamentável, de falta de maturidade, que esta coligação, e seus apoiantes nos media, nos dariam.

Por certo, haverá também interpretações, na linha do que já li por aí, de insinuação de aproveitamento emocional do sofrimento da viúva de António de Sousa Franco, com as imagens do funeral e da ida da Dr.ª Matilde de Sousa Franco à sede de campanha do PS. Quero, a este respeito dizer que, em minha opinião, Ferro Rodrigues teve um gesto que apenas o engrandece. Como aliás, todo o comportamento cívico dos militantes do PS -, desde os que ao longo da noite intervieram, como Vieira da Silva, José Sócrates e António Costa, aos militantes de base -, pautado pela sobriedade nas manifestações de regozijo pela vitória, e pelo endereçar os méritos dessa vitória a Sousa Franco, dedicando-lha a ele e à sua viúva. De igual modo, importa registar, o facto de Ferro Rodrigues, interpelado a propósito dos acontecimentos na lota de Matosinhos, ter mencionado que se irá tratar internamente, apurando responsabilidades e retirando consequências, sobre tais acontecimentos, que qualificou de repugnantes.

Ferro Rodrigues demonstrou, de uma assentada, várias coisas. Ser um líder de um partido que não quer pactuar com aquilo, e aqueles, que no seu interior apenas contribuem para confundirem o partido com o que de pior tem a nossa democracia: o caciquismo arruaceiro e “trauliteiro”, que serve interesses e “causas” que são tudo menos os interesses nacionais e as causas nobres. Ser um líder político que honra e enaltece os melhores que nas suas fileiras dão tudo, inclusive a vida, pelas suas convicções mais elevadas. Mesmo os que o fazem com liberdade de espírito e de pensamento, como o foi, sempre, o Professor Sousa Franco. Finalmente, Ferro Rodrigues, reafirma-se como líder que coloca o PS num patamar de exigência em termos de ética política, não só pelo que já foi dito, como também pelo facto de não recusar a emoção e a afectividade que, aliás, caracterizam, como sabemos, aquele partido, como fazendo parte da natureza humana e da vida. Afirmando, desse modo, uma forma humanizada de fazer política que, a nosso ver, apenas engrandece a própria política e os seus protagonistas.

A mim, pessoalmente, agradou-me de sobremaneira, a forma como Ferro soube gerir a noite eleitoral e o seu significado. É um bom prenúncio para os tempos que hão-de vir.

Aos que profetizaram, cedo demais, o seu funeral político, a noite de ontem não creio que os terá deixado menos do que perplexos.

Com os resultados de ontem perdeu a coligação de direita no poder, mas perderam também os opositores internos, e seus suportes entre os analistas nos media. Ferro Rodrigues merece, por tudo isto, pela capacidade já demonstrada para corrigir os erros, e pela coragem evidenciada para lidar com tantas e tão diversificadas contrariedades, e até tragédias pessoais, a vitória que ontem obteve. Dele se espera, agora, capacidade para protagonizar uma alternativa, politicamente sólida, coerente e credível, ao actual poder.

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