terça-feira, abril 20, 2004

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Sobre este processo de descentralização

Tal como havíamos anteriormente enunciado, vamos a partir de hoje dedicar espaço ao processo de descentralização em curso. Temos acompanhado com atenção este tema, na imprensa e também aqui na blogosfera, nomeadamente, no Causa Nossa, num interessante debate entre Vital Moreira, Luís Nazaré e os próprios leitores daquele blogue.

Devemos começar por referir que sustentamos que o verdadeiro desenvolvimento do país terá de passar pela desconcentração do poder de decisão, no que concerne a questões chave do desenvolvimento local, e pela respectiva descentralização administrativa, para que seja possível de forma célere, desburocratizada e consequentemente mais eficaz, dar resposta política de maior proximidade aos problemas e aos cidadãos, sem perder de vista a coordenação nacional das políticas públicas a todos os níveis. Só assim se conseguirá um efectivo e harmonioso desenvolvimento do país, ao invés do modelo concentrado e macrocéfalo actual, com as enormes assimetrias territoriais que o caracterizam. Da situação existente, sedimentada em decisões erradas e na falta de coragem política para a inverter, são conhecidos os efeitos, quer para o congestionamento das duas verdadeiras Áreas Metropolitanas (AM’s) existentes e ausência de ordenamento territorial da orla costeira, quer, sobretudo, para a desvitalização de quase todo o interior.

Mas se a descentralização administrativa é um passo fundamental para mudar de rumo, não é, certamente, mediante este “processo de descentralização”. Aquilo que está em curso com o nome de descentralização enferma de diversos problemas pelas razões que passamos a enunciar:

1) O desenho territorial e o mapa administrativo e regional de um país não pode resultar do critério da livre escolha self-service, e a respectiva nomenclatura não pode derivar das decisões políticas de gabinete, sem critério científico ou técnico. Por outro lado, a criação de novas entidades administrativas convém que não implique a sobreposição, em camadas (como é apanágio histórico nacional), face às existentes, muitas delas sem sentido, mas que inversamente, implique a coragem política para suprimir algumas delas que mais não são do que meras fontes de “despesismo”, inoperantes e sem justificação plausível. Existem apenas porque não houve, nas sucessivas reformas administrativas, coragem para as suprimir. Como dessas decisões não há notícia, não admiraria que à semelhança do que antes sucedeu, estejamos de novo em presença da criação de mais entidades administrativas, sem supressão de nenhuma das já existentes. Logo, de mais desperdício de recursos, de mais burocracia, de mais ineficiência e ineficácia e mais clientelismo e compadrio. Preocupante é o facto de se pretender avançar, de imediato, para uma fusão de muitas das aglomerações intermunicipais, entretanto criadas. Parece lógico perguntar-se, porque não se sugeriu, de início, então, uma escala mais alargada para pensar esses acordos intermunicipais? Não estaremos, espantosamente, no plano da ficção? Ou, mais grave ainda, no plano estrito da arbitrariedade, e da falta de seriedade política?

2) O modelo de constituição das regiões, ou entidades supra-municipais, tendo que repousar na negociação das entidades locais, e preferencialmente de forma participada pelos cidadãos dos diversos municípios, não pode senão emanar do cruzamento dessa negociação com um sólido conhecimento técnico e científico, em matéria de ciência regional e ordenamento do território. Ao invés de resultar da casuística, sem estratégia, sem fundamento técnico-científico, sem participação dos cidadãos, mas sim dos “negócios” de espúrias alianças tácticas que os autarcas quiseram, ou puderam fazer.

3) Para que a descentralização administrativa, além de um desenho, seja efectiva, eficiente e eficaz (ou consequente e produtiva), implica necessariamente que seja acompanhada de descentralização de recursos, capacidade de decisão e competências para o efeito. Ela deverá implicar, também, a desconcentração efectiva dos órgãos regionais e/ou locais da administração pública central. Aqui, importa recordar que num país com escassa capacidade de criação de riqueza, e sobretudo de criação de receita pública, devida à ineficácia do sistema fiscal, puxar o cobertor para um dos lados não resolve o problema de fundo. Importa, ainda, lembrar o atraso estrutural de desenvolvimento do país. Pois bem, sabendo nós que é ao nível local que mais evidentes se tornam os défices de modernização administrativa e de competências técnicas e científicas para encetar politicas de desenvolvimento, importaria saber o que está previsto, de efectivamente estratégico, para a ultrapassagem daqueles défices, esses sim, de natureza estrutural e estruturantes do nosso atraso de desenvolvimento. O que suspeitamos que esta "descentralização" tenha como subjacente, em sintonia com outros sinais no mesmo sentido, é uma tendência para a auto-desresponsabilização do Estado central, na coordenação e investimento, no que concerne às políticas públicas em matéria de urbanismo, habitação, ordenamento do território, ambiente e políticas sociais. A ser assim, esta "descentralização" não só não vai resolver coisa alguma, como vai inclusive, agravar o nosso atraso estrutural.

(continua)

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