sexta-feira, abril 30, 2004

___________________________________________

Sobre as comemorações do 25 de Abril

Não abordando o tema, agora, no plano do humor, julgo que a ideia de fazer cair o R, mais do que uma provocação revanchista por parte de sectores que lidam mal com o facto histórico em questão, denuncia sobretudo uma perspectiva de compromisso.

Um compromisso, perante a presença daqueles sectores no poder, na actual conjuntura. Parece-me evidente que o Primeiro-Ministro, tal como a grande maioria do seu partido, não devem, e não desejarão, ser confundidos com aqueles sectores e que, mais tarde ou mais cedo, vão necessitar de deles se demarcarem. É em episódios como o da pastilha elástica na parada militar, e outros ocorridos nas comemorações do passado dia 25, que a falta de estatura de estadista, falta de maturidade, e até falta de educação, é revelada pelo Ministro da Defesa da actual conjuntura política. Mas tal não é o fundamental. O que de facto aquele comportamento revela é a incomodidade com que aqueles sectores ainda lidam hoje com o significado do 25 de Abril de 1974. É devido a episódios como este, que a clássica dicotomia entre esquerda e direita, que alguns julgam irremediavelmente ultrapassada, se revela nos actos dos que, arrogantemente, fazem questão de nos lembrar que aquelas oposições dicotómicas, afinal, sempre continuam operativas. O seu comportamento cívico nas cerimónias daquele dia, em contraste com a postura de todos os restantes sectores político-partidários, é disso evidência irrefutável.

O dia 25 de Abril de 1974 deveria ser comemorado como um momento da História do país que representa uma ruptura de regime político em Portugal e ponto final. Esse é o facto histórico, e esse é o seu significado consensual, entre todos os que prezam a liberdade e a democracia que os acontecimentos daquele dia permitiram. Aqui não deveria ser necessário estabelecer, como o foi, compromissos conjunturais.

Não faz qualquer sentido a ideia de comemorar um processo revolucionário que só se teria iniciado no dia 26, como não o faz, a tentação de comemorar o dia 25 de Novembro de 1975, enquanto marco histórico alternativo ao 25 de Abril. Tudo o que a partir do dia 26 de passou será passível de divergências, de antagonismos, diversidade de opiniões, e até de ainda despoletar paixões e ódios. Agora, que o dia 25 de Abril, e o que ele significou, ainda hoje dividam a sociedade portuguesa, ao ponto de haver necessidade de dissimular o seu verdadeiro sentido, isso já me parece um sinal claro de que, pelo menos entre nós, não só perdura a clássica dicotomia esquerda-direita, como uma deliberada vontade política de deixar claro que uma certa direita, antagónica aos valores e princípios democráticos, mora presentemente no governo de Portugal.

Foi um tal facto que exigiu a necessidade de um compromisso que terá conduzido à pretensa valorização da dimensão do desenvolvimento que o 25 de Abril permitiu. Com a vantagem acrescida, para o governo, de permitir capitalizar a natureza positiva desse facto, já que no momento actual, lideraria ele a locomotiva desse desenvolvimento.

Em si mesma a ideia da campanha promocional não merece discussão por tão óbvia que se apresenta. Não têm número os estudos sociológicos que demonstram as múltiplas dimensões desse desenvolvimento, registado nos últimos 30 anos, como aliás, já evidenciavam essa tendência há dez e até há vinte anos. Trata-se de um processo evolutivo, globalmente favorável, não só para o crescimento económico como, de facto, para o próprio desenvolvimento.

Mas será que em 30 anos, com condições favoráveis sob diversos pontos de vista, algumas delas com origem antes ainda da ruptura permitida pelo 25 de Abril, partindo de um patamar de extremo atraso estrutural, beneficiando de uma abertura política, económica, social e cultural, que não sendo estritamente necessárias a um certo crescimento económico, são-no ao desenvolvimento propriamente dito, e finalmente, beneficiando do acesso aos fundos financeiros comunitários; poderemos julgar como admirável e excepcional, o nível de desenvolvimento actual atingido pelo país? Não me parece.

Julgo, inclusive, que apesar da tendência globalmente positiva daquela evolução, com a excepcionalidade de condições favoráveis que o país teve, deveríamos estar, 30 anos volvidos, a comemorar o facto de termos atingido um nível de desenvolvimento mais avançado. Quando tomamos para comparação as médias da União Europeia, é sabido como o país, maugrado o grande impulso dos últimos 30 anos, se situa dramaticamente abaixo daquelas médias na grande maioria dos indicadores. Isso é particularmente revelador do seu atraso estrutural, quando aferidos os indicadores que hoje mais contam para os factores estruturantes do desenvolvimento, como sejam os níveis de educação formal, a qualificação do emprego, as competências organizacionais e de gestão, a inovação científica e tecnológica.

Ao invés de uma campanha promocional e mediática, reduzida a alguma despesa pública com outdoors, anúncios de jornal e spots publicitários televisivos, efémeros e inconsequentes; as comemorações dos 30 anos do 25 de Abril - quisessem elas enaltecer o desenvolvimento e a democracia que o propiciou - deveriam permitir de forma alargada, e em profundidade, debater o caminho percorrido e o que ainda nos falta percorrer, em matéria de desenvolvimento. Reflectir, não só a auto-satisfação com os sucessos já alcançados, mas preferencialmente o que importa fazer e o que importa mudar na sociedade portuguesa para adaptarmos o nosso patamar de exigência aos desafios que o mundo contemporâneo, e os tempos que se avizinham, nos colocam. Teria sido possível fazê-lo de forma cívica, difundindo práticas de uma cultura de cidadania activa, onde ainda somos tão deficitários, e até de uma forma festiva, comemorativa, e criativa. Essa seria a melhor homenagem que poderíamos prestar à democracia e ao nosso desenvolvimento enquanto economia, enquanto sociedade e enquanto Nação. A melhor comemoração dos 30 anos do 25 de Abril.

quinta-feira, abril 29, 2004

___________________________________________

Diários (3)


Leonardo Da Vinci (1452-1519)

quarta-feira, abril 28, 2004

___________________________________________

Mente insana in corpo sano

Não sei se o desporto será, sempre, uma prática tão saudável como é comum difundir-se. Ao lidar com o corpo, e exigir com frequência agressividade, tensão, competição física, a prática desportiva torna-se, muitas vezes, tangencial ao que de mais animal temos na natureza humana. É também um contexto fértil para a sublimação de relações distorcidas e pervertidas com a sexualidade, o prazer fisico e as manifestações do líbido. Na primeira oportunidade vem à superfície o que, provavelmente, teremos de recalcado de uma má relação cultural e educacional com o corpo - porque repressiva e não raro moralista...e eis que nos vemos confrontados com as pulsões submersas nos recônditos da nossa memória genética, do tempo em que nos aproximávamos mais da animalidade do que da humanidade.

terça-feira, abril 27, 2004

___________________________________________

MEDITAÇÃO EM CATARINA

(...)

Abro-te os braços, mergulhado
na dúvida. Acaso
trocamos a vida
pelas palavras que a descrevem?

(Egito Gonçalves)
___________________________________________

ENTRE PEDRAS, PALAVRAS...

Que estupidez o sangue nas calçadas!

O sangue fez-se para ter dois olhos,
um lépido pé. um braço agente,
uma industriosa mão tocante.

Que estupidez o sangue entre as palavras!

O sangue fez-se para outras flores
menos fáceis de dizer que estas
agora derramadas.

(Alexandre O'Neill)

segunda-feira, abril 26, 2004

___________________________________________

Never Land is back.. to his best

Com a devida vénia ao seu autor (João Morgado Fernandes), reproduzo aqui três posts do melhor humor que se lê na blogosfera nacional. Para meu gosto, claro...


Evolução (caso prático)

O ministro da Defesa foi assobiado durante uma parada militar na avenida que se chama da Liberdade. No 30.º aniversário do 25 de Abril. O que nós evoluímos...

Beata sem Defesa

É claro que o ministro da Defesa escolheu mal o sítio para passar a tarde. Bem o aconselharam a dirigir-se a Roma e representar o Estado na beatificação da Alexandrina de Baleizão... perdão, Balasar.

Adenda ao apupo

Eu sei que Durão também foi assobiado na Avenida. Mas o assobio a Portas é mais simbólico. Porque, aposto, era ele que se passeava ali, pela Avenida, com o R no bolso.

domingo, abril 25, 2004

___________________________________________

Agora vamos para este lado

O mais recente álbum de Caetano Veloso promete, na linha do que se anunciava, um autêntico pastishe. O meu gosto eclético e, provavelmente, mais orientado por uma certa sensibilidade estética, do que por uma esmerada educação do gosto artístico, leva-me a consumir com fruição, obras do género, desde que não excessivamente "kitsch".

Caetano não tem desiludido em outras experiências do mesmo género. Em todo o caso aqui, com um álbum inteiramente dedicado a este filão, sabe que corre riscos, embora se mostre displicente face à recepção dos mercados, remetendo esse tipo de preocupações para a editora...

Numa primeira apreciação dos títulos anunciados, não deixa de nos chamar a atenção a inclusão neste pastishe da "música de hotel" Feelings, mais recentemente celebrizada, por uma interpretação pelo General Wirantu. Como se sabe, homem sem qualidades, incluindo as artísticas, e também sem feelings...

Mas depois temos Cry me a river. Será que me vai convencer a não ouvir repetidamente Diana Krall? Summertime, como seria "obrigatório", quantas versões há? Mas entre as menos clássicas oiço com frequência, e com prazer, a de Tori Amos. Smoke gets in your eyes , igualmente "obrigatória", para somarmos às mil e uma versões existentes. Aqui, será que me vai fazer substituir a versão de Brian Ferry e, sobretudo, a de Nana Mouskouri? Claro que, "vozes fora", nada como a versão estritamente jazzistica de David Sanborn.

Mas o que dizer da inclusão de Love me Tender, popularizada por Elvis Presley? E para culminar esta miscelânia, algo de mais recente, e talvez mais surpreendente, ou talvez não, tendo em conta a antiguidade dos clássicos anteriores, Come as you are de Kurt Cobain dos Nirvana. O músico sobre cujo suicídio tantos admiradores escreveram, e do qual agora se levanta a hipótese de, à boa maneira do showbizz, não se ter suicidado mas sim ter sido "suicidado"...

É, de facto, um vol d'oiseau sobre o "cancioneiro norte-americano", este novo trabalho de Caetano. As suas qualidades vocais e a sua sensibilidade para a interpretação de outros hits clássicos deixam-nos, no mínimo, curiosos para saber até onde a versatilidade de Caetano nos pode conduzir, como admiradores das suas interpretações. Das declarações de amor à américa latina e à sua histórica guerrilha, passando por outras coisas mais "softs", até este regresso a uma certa nostalgia dos clássicos, própria da idade madura, já revelada na trilha musical do filme de Almodovar... E agora? O que mais poderemos esperar? Vamos comprar, ouvir e veremos...ou não é, também, aquilo que Caetano espera de nós, consumidores do seu trabalho, ao estar sempre tão atento à "crista da onda" e ao mercado das modas, do pensamento e da música? Caetano Veloso (ou a sua editora?) não deixa, inclusive, por mãos alheias, o trabalho de marketing necessário, adaptando o registo ao contexto nacional em que as suas entrevistas são produzidas. Tudo previsto, nada improvisado. Veja-se o conteúdo das suas declarações para o público brasileiro e compare-se com o registo de outras entrevistas dadas em Londres (em série) para jornalistas de várias nacionalidades.

Lógica global, especificidades locais.

***

"O alienígena Caetano Veloso canta em inglês

Compositor baiano repassa a nata do cancioneiro norte-americano em seu novo álbum - de Cole Porter a Kurt Cobain

Ele já foi araçá azul, jóia, bicho, totalmente demais, estrangeiro e até qualquer coisa. Agora, se considera um alienígena ao lançar o álbum A Foreign Sound. Caetano Veloso mergulhou nos standards norte-americanos num disco gravado no Brasil, só com músicos brasileiros. “A escolha dessas músicas foi um problema o tempo todo. Tudo me fez sofrer: deixei de gravar algumas, amadurecer canções que não estavam assentadas em mim... o disco acabou ficando longo, ninguém vai ouvir inteiro!”, diz Caetano. São 23 faixas, que vão desde Cole Porter (lembrado em Love for Sale e So in Love) até Kurt Cobain (Come as You Are). “É uma seleção demasiadamente variada. É um disco alienígena para brasileiros, americanos, para mim...”, classifica.

Durante coletiva realizada no hotel Copacabana Palace (RJ), o cantor contou que a idéia de um disco de canções norte-americanas surgiu quando ele estava no exílio, em 1970. “Mas depois desisti. Tudo é meio vago, vários fatores me levaram a fazer o disco agora, que eu nem desisti nem adiei mais”, tenta explicar. Ele lembra que o CD foi feito em meio a muitas interrupções devido a suas excursões e às de Jaques Morelembaum (co-produtor do disco, ao lado de Caetano). “Foi uma demora que me deixou impaciente, querendo fazer outras coisas. Mas que acabou aumentando os momentos prazeirosos no estúdio”, conta.

Entre essas várias coisas que Caetano pensou em fazer, estão um disco de samba e outro de canções sentimentais. “Tenho vontade de fazer composições novas. Até fiz um samba, Diferentemente, que cantei no Bareto (casa noturna de São Paulo). Este desejo está aqui dentro, vários esboços apareceram mas tive que reprimir. Aguardem, que haverá o retorno do recalcado!”, brinca. Por enquanto, Caetano está fazendo a trilha do novo espetáculo do grupo de dança Corpo, gravada no estúdio de Carlinhos Brown na Bahia, e também a do próximo filme do cineasta Jorge Furtado, Meu Tio Matou um Cara.

Segundo Caetano, as canções de A Foreign Sound são exemplos de perfeição de estrutura. “Eu até queria gravar Is This Love, de Bob Marley, algo canadense, de Trinidad e Tobago, mas acabaram entrando só as americanas”, diz. E comenta as versões que fez para algumas delas: “Body and Soul (Sour/Green/Heyman/Eyton) gravei só com o violão. Depois chamamos o Zeca Assumpção e Ricardo Silveira, ficou (em um ritmo) 4/4 simples. Já The Man I Love (George & Ira Gershwin) toquei em casa sonoridade rock, ficou bem magro, bonito. E Stardust (Hoagy Carmichael), com Armandinho tocando bandolim elétrico, aumentou seu parentesco com o choro.”

Caetano também destaca a presença de Feelings, dizendo que a música é um “nó” no disco. “É uma falsa canção americana feita por um brasileiro (Morris Albert) em São Paulo. Feelings ganhou uma versão punk dos meninos do Offspring, que substituíram ‘love’ por ‘hate’ (ódio). Eu a tratei sem ironia e dediquei a David Byrne, que esse nome a um de seus álbuns”, conta o cantor. O disco ainda traz The Carioca (Eliscu/Kahn/Youmans) - “Uma falsa música de país tropical, levada por uma percussão baiana que é um ritmo tropical inventado”, comenta – e Love Me Tender (Presley/Vera Matson), sobre a qual Caetano fala: “É a mais antiga do disco, é do século XIX e fizeram a letra para Elvis Presley cantar. Gravei para meu filho Zeca, que a tocava muito ao piano.”

Quanto à escolha das canções e a forma como elas entraram em sua vida, Caetano relata, sem deixar de causar surpresa sobre suas preferências: “Sou muito passivo para música, consumo involuntariamente. Mas tenho ouvido funk, essa semana fui a duas festas nas quais o DJ Marlboro estava tocando. Hoje, são milhões de pessoas envolvidas nesse movimento e não querer reconhecer isso é ser babaca. Não é o meu caso.” O baiano não demonstra nenhuma expectativa em relação ao disco no mercado exterior. “Não acho que vá ser tão relevante nos Estados Unidos, afinal há tantos lançamentos, de tantos lugares, nesse estilo! E essa coisa de lançamento simultâneo é expectativa de gravadora, não tenho nada a ver com isso.”


(Marco Antonio Barbosa e Mônica Loureiro, CliqueMusic, 07/04/2004)
___________________________________________

Determinismos ao sabor da época ou da liberdade poética

À boa e velha maneira de Karl direi, de forma dura e crua, que é a economia que tudo determina. Mas direi também ser ela pela cultura determinada. Ou será por uma determinada cultura?
___________________________________________

Onde é que tu estavas no 25 de Abril?



Aqui, a 6000 Km de distância do epicentro da Revolução.
___________________________________________

(25 de Abril de 1974)

(...)
Antes de morrer a televisão mostrou-me um dos mais belos momentos humanos da História deste povo, onde os militares fazem revoluções para lhe restituir a liberdade: a saída dos prisioneiros políticos de Caxias.
Espectáculo de viril doçura cívica em que os presos...alguns torturados durante dias e noites sem fim...não pronunciaram uma palavra de ódio ou de paixões de vingança.
E o telefone toca, toca, toca...Juntámos as vozes na mesma alegria. Só é pena que os mortos não nos possam também telefonar da Morte: o Bento de Jesus Caraça, o Manuel Mendes, o Casais Monteiro, o Redol, o Edmundo de Bettencourt, o Zé Bacelar, a Ofélia e o Bernardo Marques, o Pavia, o Soeiro Pereira Gomes e outros, muitos, tantos... Tenho de me contentar com os vivos. Porque felizmente dos vivos poucos traíram ou desanimaram. Resistimos quase todos de unhas cravadas nas palmas das mãos...
De repente, estremeço, aterrado.
Mas isto de transformar o mundo só com vivos não será difícil?
Saio de casa. E uma rapariga que não conheço, que nunca vi na vida, agarra-se a mim aos beijos.
Revolução.

(José Gomes Ferreira)

sábado, abril 24, 2004

___________________________________________


Em Abril a libertação finalmente...
___________________________________________

Apanhado na Rede

Assumo que o Forum Comunitário se posiciona numa fronteira reconhecidamente ambígua. Entre o meu papel como docente, investigador e profissional do campo da sociologia, por um lado e o meu papel como cidadão e como pessoa, com as suas opções, gostos, apreciações valorativas, por outro. Por isso, procurei um semi-anonimato deste Forum e tenho hesitado em optar por uma maior divulgação do mesmo, nomeadamente entre colegas. É claro que sabendo, a priori , que mais tarde ou mais cedo seria do conhecimento de muitos colegas a existência deste blogue. Sobretudo, dos que há mais tempo do que eu próprio estão presentes na blogosfera.

Um dos meus blogues favoritos, como pude referir num dos primeiros posts do FC é O País Relativo. Por isso, também, consta do topo da lista de links aqui ao lado. Apesar disso, embora cruzando quase diariamente nos corredores pelo Miguel Cabrita, hesitei sempre em falar-lhe da minha frequência (recente) da blogosfera e do meu apreço pelo País Relativo. Sabia, no entanto, que mais tarde ou mais cedo, havíamos de nos cruzar, também nos corredores da blogosfera.

Eis que o Miguel acaba de descobrir o FC, não diria escondido atrás da porta, mas sim numa porta ao lado...
Esperamos, então, a partir de agora, cruzarmo-nos ainda mais vezes, também nos corredores desta vizinhança de um bairro virtual que é a blogosfera nacional. Agradeço, obviamente, a benévola referência que o Miguel fez ao FC e digo-lhe: The door next to yours is open...

sexta-feira, abril 23, 2004

___________________________________________

Hoje sinto-me o Abrupto a olhar os céus...

Hoje o céu está límpido, transparente, sobre esta partícula do universo. As estrelas cintilantes, a lua e vénus brilham na sua alvura. Tudo está no seu lugar.
___________________________________________

Utopias

Ficcionemos, por instantes, que o universo do futebol deixava de existir. Que em sua substituição tomávamos três grandes ideias estratégicas para o país. Imaginemos, ainda, que outras quinze ideias contribuíam para a concretização das três primeiras. Como hoje os outros clubes trabalham para a valorização dos três grandes clubes nacionais. Que um conjunto de cidadãos se organizava em torno de cada uma daquelas três ideias e concorriam por elas. Que os meios de comunicação divulgavam tão massivamente aquelas três ideias, como hoje divulgam os três maiores clubes nacionais de futebol. Que havia tantos programas televisivos sobre essas três ideias como há hoje sobre os três grandes clubes nacionais de futebol. Que havia o mesmo número de debates, comentários, análises, reflexões, transmissões em directo, em diferido, em repetição, como hoje há sobre o futebol nacional. Que em todos os cafés, locais de trabalho, ruas, casas, ministérios, autarquias, empresas, se debatia essas ideias, e a sua melhor concretização, como hoje se debate o futebol nacional. De forma minuciosa, problematizada, argumentativa. Qual o melhor pé do sujeito que joga a extremo esquerdo na ideia estratégica xis? Porque a ideia estratégica zê deveria mobilizar, para o objectivo específico da defesa central, não este jogador mas sim aquele?

Imaginemos ainda, por instantes, que construíamos empresas e empreendimentos e investíamos os nossos recursos financeiros nessas três grandes ideias estratégicas, como investimos hoje no mundo do futebol. Que os cidadãos se mobilizavam, em torno dessas três ideias, apaixonadamente e de modo tão motivado e empenhado como hoje se mobilizam para o futebol…

Que sofríamos e nos emocionávamos, rasgávamos as camisolas, morríamos de ataque fulminante nas bancadas, ríamos e chorávamos, com os sucessos e insucessos de cada passo da concretização de cada uma daquelas três grandes ideias estratégicas para o país.

Julgo que seríamos o melhor país, não da Europa, mas do mundo. Mas isto é apenas uma utopia, claro, não realizável…

Post-scriptum: Este post foi actualizado às 23 horas e 45 minutos

quarta-feira, abril 21, 2004

___________________________________________


Edouard Manet, (1832-1883), 1864.
___________________________________________

Poemário

PRIMAVERA

O vento primaveril foi escultor
no pomar, e pelo seu engenho
cada árvore parece uma boneca.
O campo cobriu-se de um pano chinês:
os brincos das árvores são um fio de pérolas.
Como as belas mulheres por trás da cortina,
vê como o faceiro sol
ora sai da nuvem, ora volta a procurá-la.
E a alta montanha tira da cabeça
o diadema de prata; o sol brilha de novo;
o seu rosto é de seda; e o seu seio, de almíscar.

ONÇORI (séc. XI)
in Rosa do Mundo - 2001 Poemas para o Futuro
(tradução de Maria Jorge Vilar de Figueiredo)
___________________________________________

Concordo

Que este ou aquele dirigente do futebol meta uma "cunha" aos árbitros para falsear resultados desportivos, ou beneficiar este ou aquele clube, sendo grave, não deixam de ser peanuts, como referiu num canal televisivo um jurista-comentador. O que importaria investigar, mencionou aquele jurista-comentador, seria se de facto há, ou não, "branqueamento de dinheiros sujos no futebol". Isto é, dinheiros originários dos vários tipos de tráfico e da economia paralela, em geral. Não foi isto que foi escrito por uma conhecida magistrada em livro? Sendo assim, todos esperamos que as autoridades judiciais investiguem aquilo que, de facto, merece ser investigado e essas autoridades têm obrigação de investigar.

terça-feira, abril 20, 2004

___________________________________________

Sobre este processo de descentralização

Tal como havíamos anteriormente enunciado, vamos a partir de hoje dedicar espaço ao processo de descentralização em curso. Temos acompanhado com atenção este tema, na imprensa e também aqui na blogosfera, nomeadamente, no Causa Nossa, num interessante debate entre Vital Moreira, Luís Nazaré e os próprios leitores daquele blogue.

Devemos começar por referir que sustentamos que o verdadeiro desenvolvimento do país terá de passar pela desconcentração do poder de decisão, no que concerne a questões chave do desenvolvimento local, e pela respectiva descentralização administrativa, para que seja possível de forma célere, desburocratizada e consequentemente mais eficaz, dar resposta política de maior proximidade aos problemas e aos cidadãos, sem perder de vista a coordenação nacional das políticas públicas a todos os níveis. Só assim se conseguirá um efectivo e harmonioso desenvolvimento do país, ao invés do modelo concentrado e macrocéfalo actual, com as enormes assimetrias territoriais que o caracterizam. Da situação existente, sedimentada em decisões erradas e na falta de coragem política para a inverter, são conhecidos os efeitos, quer para o congestionamento das duas verdadeiras Áreas Metropolitanas (AM’s) existentes e ausência de ordenamento territorial da orla costeira, quer, sobretudo, para a desvitalização de quase todo o interior.

Mas se a descentralização administrativa é um passo fundamental para mudar de rumo, não é, certamente, mediante este “processo de descentralização”. Aquilo que está em curso com o nome de descentralização enferma de diversos problemas pelas razões que passamos a enunciar:

1) O desenho territorial e o mapa administrativo e regional de um país não pode resultar do critério da livre escolha self-service, e a respectiva nomenclatura não pode derivar das decisões políticas de gabinete, sem critério científico ou técnico. Por outro lado, a criação de novas entidades administrativas convém que não implique a sobreposição, em camadas (como é apanágio histórico nacional), face às existentes, muitas delas sem sentido, mas que inversamente, implique a coragem política para suprimir algumas delas que mais não são do que meras fontes de “despesismo”, inoperantes e sem justificação plausível. Existem apenas porque não houve, nas sucessivas reformas administrativas, coragem para as suprimir. Como dessas decisões não há notícia, não admiraria que à semelhança do que antes sucedeu, estejamos de novo em presença da criação de mais entidades administrativas, sem supressão de nenhuma das já existentes. Logo, de mais desperdício de recursos, de mais burocracia, de mais ineficiência e ineficácia e mais clientelismo e compadrio. Preocupante é o facto de se pretender avançar, de imediato, para uma fusão de muitas das aglomerações intermunicipais, entretanto criadas. Parece lógico perguntar-se, porque não se sugeriu, de início, então, uma escala mais alargada para pensar esses acordos intermunicipais? Não estaremos, espantosamente, no plano da ficção? Ou, mais grave ainda, no plano estrito da arbitrariedade, e da falta de seriedade política?

2) O modelo de constituição das regiões, ou entidades supra-municipais, tendo que repousar na negociação das entidades locais, e preferencialmente de forma participada pelos cidadãos dos diversos municípios, não pode senão emanar do cruzamento dessa negociação com um sólido conhecimento técnico e científico, em matéria de ciência regional e ordenamento do território. Ao invés de resultar da casuística, sem estratégia, sem fundamento técnico-científico, sem participação dos cidadãos, mas sim dos “negócios” de espúrias alianças tácticas que os autarcas quiseram, ou puderam fazer.

3) Para que a descentralização administrativa, além de um desenho, seja efectiva, eficiente e eficaz (ou consequente e produtiva), implica necessariamente que seja acompanhada de descentralização de recursos, capacidade de decisão e competências para o efeito. Ela deverá implicar, também, a desconcentração efectiva dos órgãos regionais e/ou locais da administração pública central. Aqui, importa recordar que num país com escassa capacidade de criação de riqueza, e sobretudo de criação de receita pública, devida à ineficácia do sistema fiscal, puxar o cobertor para um dos lados não resolve o problema de fundo. Importa, ainda, lembrar o atraso estrutural de desenvolvimento do país. Pois bem, sabendo nós que é ao nível local que mais evidentes se tornam os défices de modernização administrativa e de competências técnicas e científicas para encetar politicas de desenvolvimento, importaria saber o que está previsto, de efectivamente estratégico, para a ultrapassagem daqueles défices, esses sim, de natureza estrutural e estruturantes do nosso atraso de desenvolvimento. O que suspeitamos que esta "descentralização" tenha como subjacente, em sintonia com outros sinais no mesmo sentido, é uma tendência para a auto-desresponsabilização do Estado central, na coordenação e investimento, no que concerne às políticas públicas em matéria de urbanismo, habitação, ordenamento do território, ambiente e políticas sociais. A ser assim, esta "descentralização" não só não vai resolver coisa alguma, como vai inclusive, agravar o nosso atraso estrutural.

(continua)

segunda-feira, abril 19, 2004

___________________________________________

O governo e os macacos de Darwin

Por acaso não teria tanta certeza que como refere o BdE, este governo seja um adepto fervoroso das teorias da evolução de Charles Darwin. O Gato Fedorento, por exemplo, acha que "(...) para eles, o 25 de Abril foi certamente criado por Deus. Mais: eles levam a mal que se lhes diga que as coisas são produto de um processo evolutivo. Já com aquela história dos macacos ficaram muito indispostos (...)".
___________________________________________

Link com link se paga

É chegada a hora dos primeiros agradecimentos pela recepção que o Forum Comunitário (propositadamente sem acento agudo em Fórum), teve na blogosfera.

Pelo gesto simpático de incluirem referências a este blogue nos seus posts, e/ou terem "linkado" para o FC, agradecemos ao Causa Nossa, Professorices, Ouguela com Vida, Memória Virtual, Foguetabraze, Ecos da Província e Barnabé.

Bem hajam pelos vossos encorajadores comentários.

Aos que nos colocaram nos seus links de referência agradecemos ao Tugir, ao Quartzo, ao Alberto Velasquez, ao analiticamente incorrecto, ao Bota Acima, ao Fayal, ao Holocénico, ao Blog do Alex, e ao Que Universidade?

Ao Natureza do Mal agradeço a promessa, via email, de corresponder com um link ao facto de o ter citado no FC e de estar incluído nos meus Outros Eleitos. Um agradecimento especial, ainda, ao Francisco José Viegas por ter correspondido no Aviz, com um link, ao facto de estar, também, entre os meus Outros Eleitos (no caso, já estava, muito antes da existência da blogosfera, creio que desde os primeiros passos do JL)...

Espero, embora com dúvidas, poder confiar no Technorati... Se porventura não referi quem devia, agradeço que, por comentário ou email, me façam chegar essa informação para que a justiça seja reposta.

Quanto aos que, apesar de estarem entre os meus eleitos, não "linkaram" ainda o FC, maugrado possuirem lista de links, não se preocupem. De amores não correspondidos está a história da literatura cheia, e pelos vistos a da blogosfera também... Continuarei, mesmo assim, a ler-vos regularmente com interesse...

Para todos um abraço blogosférico!
___________________________________________

That's exactly my point of view


ISTO ANDA TUDO LIGADO (fragmentos)

*
Os guerrilheiros que saem do Vává benzem-se à sua maneira
como se a próspera guerrilha se fundasse em qualquer casa além
da linha. Sábios de nascença citam nomes e têm decorada uma biblioteca,
tal qual alguns desenraizados do Saldanha - mas de modo diferente. Abotoam-se com esmero e engravatam-se ou não conforme as circunstâncias. Os guerrilheiros que entram no Vává usam as citações à bandoleira e telefonam com muita assiduidade.

*

(Eduardo Guerra Carneiro, 1970)


ZERO

Igual a zero a distância ao infinito
Impossível de tocar com nossos braços

Valores estranhos aos corpos
ignorados noite e dia

Zero a distância
zero o próprio espaço

Para quê voltar aos caminhos sem regresso
quando nossas mãos agarram toda a vida?

(Eduardo Guerra Carneiro, 1961)

domingo, abril 18, 2004

___________________________________________

Os 35 anos do movimento estudantil de 1969

Porque é necessário não deixar passar uma loção sobre o significado do 25 de Abril de 1974 e sobre os motivos pelos quais ele existiu, de facto, vale a pena ler os relatos históricos que Vital Moreira vem publicando no Causa Nossa, ele que foi testemunha viva e protagonista do movimento estudantil de 1969.
___________________________________________

Intima fracção, o blogue

Excelente é o trabalho do Intima Fracção, programa de rádio que acaba de comemorar 20 anos de existência e a que agora o Francisco Amaral dá voz também na blogosfera. Parabéns por este excelente trabalho!

sábado, abril 17, 2004

___________________________________________

"Não há almoços grátis"

Subscrevo o que diz o Aviz. O meu ponto era apenas esse: "Não há almoços grátis"...
___________________________________________


Lana Mizikovsky, Geneva 2002 Winter Photo - Florence, Italy
___________________________________________

Poemário

FLORENÇA

Por entre as pontes tuas multicores
O Arno pressago aquieta-se de areia
E nos reflexos calmos mal desfeita
Severos arcos no esfolhar das flores.

Azul estremece o arco entre colunas
Lançado a meio de palácios belos:
Alvas estrias pelo azul: anelos:
E branca juventude nas colunas.

DINO CAMPANA (1885-1932)
in Rosa do Mundo - 2001 Poemas para o Futuro
(tradução de Jorge de Sena)
___________________________________________

Politics after-hours

Está iniciada a campanha eleitoral do primeiro-ministro. Não sei se também a do seu partido e muito menos a do seu parceiro de coligação. Há vários sinais disso mesmo. Desbloquearam-se financiamentos congelados para pagar despesas de investigação feitas desde 2002! Aumentaram-se os valores das reformas (em 12 euros! Já só faltam 88 euros para a convergência com o salário mínimo em 2007)...

Neste capitulo o primeiro-ministro começou a contar com inestimáveis ajudas para a sua campanha. O nobel escritor nacional aceitou o convite para o almoço de desagravo [relembro o que aqui escrevi a esse propósito]. Não sei o que disto pensará o seu parceiro de coligação mas, certamente, não me parece que tenha apreciado a ideia...

Ouro sobre azul: JMF em editorial no público extremou posições quanto à relação da Nação com a Invasão do Iraque, mesmo como que a dizer: "vejam como é moderada a postura do nosso primeiro-ministro quanto ao Iraque".

Namoro ao voto que pode vir do centro-esquerda. Fé aos que acreditam na bondade das suas promessas de repor a justiça social depois de arrumar a casa. Piscar de olho à inteligentsia com o pagamento de dívidas aos laboratórios científicos, com dois anos de atraso, e declaração de intenções quanto à excelência científica (desde que hiperbolicamente prolixa...). Profissão de fé na democraticidade cultural, independentemente das orientações religiosas, ou outras, dos escritores...

Vai bem, vai bem. Não está a correr nada mal a campanha. Só não se percebe o que é feito do líder do outro partido do governo? Terá levado um "arreda-te que me estás a estorvar o esquema"?
___________________________________________

Uma estruturação desestruturante

Embora sempre excessivo na forma, Miguel Sousa Tavares, "põe o dedo na ferida" na substância, no que se refere às questões ambientais, urbanísticas e de ordenamento do território. Aqui, subscrevo quase sempre as suas posições. Recordei-me, agora, de ter ouvido há uns quinze anos a um especialista de ordenamento do território, o relato da máxima de um autarca do interior do país, desse tempo: "Quero fazer desta terra uma Amadora!". Referia-se o edil, ao desordenamento urbano e à densidade urbanística de construção em altura, mas que aquele cidadão tomava como um "modelo de desenvolvimento". Grave era o facto de o homem estar convicto da bondade da sua megalómana, inconsciente e desastrada visão do que é o desenvolvimento. Certamente que os seus objectivos não terão sido inteiramente alcançados. Mas, estou certo que aquele homem deixou obra!

Entretanto, devemos reconhecer que, apesar de tudo, a formação de muitos dos nossos autarcas saiu, ela própria, daquele grau de desenvolvimento. De facto, estávamos, então, no grau zero do poder local. Aquilo de que eu não tenho dúvidas que mudou pouco, ou mudou ainda para pior, foi o papel estruturante (que no caso é desestruturador) do sector imobiliário neste país. É também verdade que não é apenas em Portugal que o sector imobiliário tem a importância que tem. O que está em questão aqui é, também, a própria lógica de funcionamento das economias capitalistas urbanas e do papel que nelas desempenham os mercados fundiários, em particular, e imobiliários em geral. Mas, de facto, em Portugal, aquele sector é mais do que um sector da economia. É o sector que estrutura a economia e a própria política. Está por fazer, mas não será fácil fazê-lo, o estudo aprofundado das redes de relações por que passa aquela "estruturação".

sexta-feira, abril 16, 2004

___________________________________________

Dar aulas e receber lições

Costumo dizer que não dou aulas, mas vendo. Sendo isto apenas uma nota de humor, não deixa de ser verdade que cada vez mais uma aula, nomeadamente num ensino superior crescentemente competitivo e aberto ao mercado, é um produto colocado nos respectivos mercados. Mercados de licenciaturas, de mestrados, de doutoramentos, de conferências e até de acções de formação. A lógica concorrencial e a mercadorização, também do ensino, obrigam a uma cultura promocional, em muitos aspectos derivada da lógica da produção e comercialização de mercadorias. Disso mesmo falaremos aqui em próxima oportunidade.

Por agora, gostaria de dizer que faço aulas e recebo lições, nomeadamente dos alunos dos diversos graus de ensino, ou até dos cursos de formação. Não concebo o produto aula senão como um processo de aprendizagem, também para o docente. Se faço boas ou más aulas é algo que deixo ao critério da avaliação dos meus discentes, os quais são auscultados para o efeito. Gostaria, no entanto, que a carreira académica que é duplice, porque inclui duas carreiras, uma científica e outra pedagógica, tivesse uma maior valorização, também na avaliação do nosso desempenho, da sua componente pedagógica. Poucas profissões serão tão avaliadas, ao longo da carreira, como a de investigador universitário. Essa avaliação incide, em exclusivo, na dimensão científica. Sabemos que há (ou houve) provas pedagógicas na transição da categoria de estagiário para assistente. Mais tarde, também nas provas de agregação. Mas esses momentos de avaliação mais não são do que a encenação de uma aula e, portanto, avalia-se aí a maior ou menor capacidade para encenar os conteúdos e métodos pedagógicos e não tanto as competências pedagógicas, propriamente ditas.

Considero que não há necessariamente uma coincidência entre a competência científica de um docente universitário e o seu desempenho pedagógico. Sendo a carreira universitária uma carreira que há muito pratica a "aprendizagem ao longo da vida", pela sua própria natureza, ela é também, virtualmente, o lugar onde a humildade dos profissionais, que na prática nunca deixam de ser também alunos, é inerente à sua profissão. Por isso considero que só faço boas aulas quando consigo receber lições dos meus alunos. Por isso considero que o nosso desempenho pedagógico deveria, também, ser avaliado pelos nossos pares, mas in acto e não mediante uma qualquer encenação. Por isso, também, considero que só quem não pratica a humildade académica dá aulas, sem receber lições. Eu procuro fazer aulas e preciso de receber lições para procurar melhorar o meu desempenho pedagógico. Gostaria de ser avaliado, formalmente, também como docente.

quinta-feira, abril 15, 2004

___________________________________________


A Virgem e o Menino com Santa Ana, 1510,
Leonardo Da Vinci (1452-1519)
___________________________________________

Poemário

OS FARÓIS

[...]

Leonardo da Vinci, um espelho profundo
Onde anjos encantados, com um doce sorriso
Coberto de mistério, aparecem à sombra
Dos pinhais e dos gelos que há nos seus países;

[...]

BAUDELAIRE (1821-1867)
As Flores do Mal
(tradução de Fernando Pinto do Amaral)
___________________________________________

No DN de domingo a primeira página, em diversos títulos anuncia o medo. Lembrei-me deste poema de Alexandre O'Neill que, por todas as razões, me parece muito actual:

O POEMA POUCO ORIGINAL DO MEDO

O medo vai ter de tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis

Vai ter olhos onde ninguém os veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no tecto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos

O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
óptimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projectos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com certeza a deles

Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados

Ah o medo vai ter tudo
tudo
(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)

(...)

(Alexandre O'Neill)
___________________________________________

Que tempos difíceis estes...

Sobre a volatilidade do "pensamento político" de Caetano Veloso, ironiza Francisco José Viegas no Aviz. Em A Praia Ivan Nunes sai em defesa de Caetano, relembrando a origem da sua corrente estética para justificar uma endémica relação daquele com a cultura norte-americana, mais floating. O que lhe valeu, a ele e a todo o movimento tropicalista, na primeira fase, sérios antagonismos do movimento MPB. Este último, mais empenhado politicamente, ao invés do tropicalismo, que por se pretender tributário da cultura pop norte-americana encerrava uma perspectiva mais "deepthlessness".

Por outro lado, refere o Ivan Nunes, uma série de valores, princípios e legados políticos e intelectuais, que fazendo parte do património ideológico da esquerda contemporânea, têm origem, precisamente, nos EUA.

Como muito bem exprime António Barreto, estão difíceis os tempos hoje. Mas estão difíceis, também, porque os nossos quadros de leitura do mundo se tornaram menos dicotómicos, mais densos, menos simplistas, mais exigentes. Na verdade aquelas oposições duraram pouco. Logo nos anos setenta Chico Buarque reconcilia-se com o tropicalismo e os tropicalistas haviam de progredir para uma perspectiva estética menos "surfaceness".

Em todo o caso nem todos amadurecem, de igual modo, com a idade. Gilberto Gil, por exemplo, denota hoje uma maturidade e uma sensatez, nas suas apreciações sobre o papel da cultura no mundo contemporâneo e na sua perspectiva política, que não encontramos no "pensamento politico" de Caetano. Este parece, de facto, preso ao simplismo "surfaceness" e floating de uma determinada cultura pop norte-americana. Sim, porque importa frisar que dentro da própria cultura pop, por definição, encontramos também uma miríade de insights de sentidos e alcances muito distintos.

Se quanto à qualidade estética do seu trabalho, Caetano merece a nossa preferência e admiração, mais do que Gil, do qual subtraimos a excelente participação no festival de Jazz de Montreux, senão estou em erro de 1976, que possuimos em vinil para os arquivos da nossa história e da memória - já quanto às suas intervenções no plano político, estamos conversados. Entre outras coisas, relembremos a resposta recente sobre o que pensava de Bin Laden, a sua adesão a uma "ideia peregrina" de ajuste de contas com a história da escravatura e do colonialismo e por aí adiante.

Ao contrário do que refere Ivan Nunes, não me parece que Caetano Veloso se antecipe a coisa alguma em matéria política, e a credibilidade do seu "pensamento político" situa-se na razão inversa da qualidade estética do seu trabalho como compositor e cantor.

Deixando Caetano entregue ao que melhor sabe fazer, vejamos agora a segunda questão do post de Ivan Nunes: a questão do anti-americanismo. Uma vez mais apelo ao excelente texto de António Barreto, para frisar que os tempos estão difíceis, porque falar de "anti-americanismo" merece alguma cautela. O que defendo é, então, que há entre os americanos muitos "anti-americanistas", no sentido em que uma parte deles renega e não se identifica com aquele património ideológico que o Ivan refere, remetendo-o para a esquerda contemporânea. Reconheço que há uma vaga de anti-americanismo, até primário, onde se penduram alguns arautos de regimes totalitários que conhecemos e um certo saudosismo das dicotomias e oposições simplistas. O mundo, e o conhecimento que dele temos hoje, não se compadece com tais perspectivas. Pois bem, é precisamente isso que uma certa oposição à actual política norte-americana, pretende frisar. Não se trata de anti-americanismo, mas sim de um antagonismo ao fanatismo daqueles que, situem-se à esquerda, ou à direita, sejam americanos, ou não, convivem mal com aquele legado político, aqueles valores e princípios, que o Ivan Nunes, refere, e bem, como sendo quase todos eles originários, e parte integrante, de uma cultura norte-americana que se universalizou (pelo menos ao universo da nossa cultura ocidental).
___________________________________________

"Tempos difíceis"

António Barreto, no Público, do passado domingo:

(...)
"Sou ocidental, considero que a dita civilização do mesmo nome é a principal obreira, nos tempos modernos, da liberdade e da dignidade do indivíduo, sendo também a que, nos últimos séculos, mais contribuiu para o desenvolvimento da cultura e das ciências. Penso também que, mau grado horrores recentes conhecidos, pertencem a essa área do mundo praticamente todos os exemplos de vida decente. Sei que esta civilização está sob ameaça séria, dos seus próprios defeitos, com certeza, mas sobretudo dos seus inimigos, que a querem simplesmente destruir e conquistar. Por isso estimo, há alguns anos, que muitos desses inimigos, nomeadamente os gangs milionários dos produtores e dos distribuidores de petróleo e de droga, assim como os ditadores cleptocratas, muitos deles socorrendo-se do fanatismo islâmico, estão a precisar de uma lição, tanto em termos políticos como militares e económicos. E sou de opinião que as organizações terroristas, islâmicas ou não, devem ser combatidas com todos os meios, sem misericórdia nem complacência. Mas não me revejo na campanha americana no Próximo Oriente, da Palestina ao Iraque, nos desastres provocados e na incompetência política manifesta. Nem na hipoteca israelita da política americana. Nem na inútil passividade das Nações Unidas. Nem na covarde chantagem de alguns países europeus, como a França e a Alemanha. E receio os resultados da catástrofe em curso: ao contrário do Vietname, onde só os americanos perderam, com o Iraque, Israel e a Palestina, entre outros, perderemos todos, especialmente os ocidentais. Espero que se ponha um termo à política belicosa do Estado de Israel e se crie um Estado independente da Palestina. Como desejo que os americanos, com a colaboração dos Estados ocidentais e europeus, corrijam radicalmente as suas estratégias actuais, vençam as guerras contra o terrorismo e derrotem os Estados, os partidos e os movimentos que, sobretudo no universo islâmico, põem em perigo o ocidente e impedem a paz no mundo. O que não faz de mim um agente dos americanos, muito menos anti-americano ou anti-ocidental".
(...)

Vale a pena ler o texto todo aqui.
___________________________________________

Excelência a metro

Um dos temas de que nos ocuparemos, também, neste Forum, será o ensino superior e a investigação científica, onde aliás, certamente, contaremos com o conhecimento aprofundado do tema por parte de alguns colegas que marcam presença na blogosfera, como é o caso do Professorices, do Causa Nossa e do Holocénico, onde fui alertado para a notícia comentada pelo Empatia e que também captou a atenção do colega Rui Tavares, do sempre atento Barnabé.

A ministra da Ciência e do Ensino Superior, anuncia uma nova medida para premiar a excelência e atrair "os cérebros" nacionais, actualmente a residir em países onde a carreira científica é mais atractiva. O Estado (leia-se a Fundação para a Ciência e Tecnologia, que - já agora - congelou financiamentos à investigação de compromissos assumidos anteriormente, paralisando a investigação científica em diversas áreas, no país) pagará despesas de investigação aos jovens doutorados que possuam, pelo menos, 100 artigos científicos publicados em revistas internacionais e tenham já orientado, no mínimo, 10 teses de doutoramento. No caso dos que residam no estrangeiro, e queiram regressar, o valor pecuniário financiado duplica.

Como dizia há dias e antes desta medida ser anunciada, um colega com humor, "passaremos a funcionar segundo os valores em Bolsa, comandados pelos critérios de NASDAQ". Há uma corrida desenfreada pelo maior número de publicações em revistas científicas internacionais. O critério é o número. Animado de tal espírito, outro colega, anunciava-me há tempos já ter cerca de sessenta publicações (quase todas nacionais entenda-se), no seu curriculum. Ao que retorqui, assinalando o meu espanto, que tanta publicação já devia dar uns bons metros de curriculum.

Quanto à medida em apreço: mesmo sabendo que se está a falar de revistas com referees, parece-me difícil conseguir excelência de uma tal quantidade de artigos por parte de um jovem cientista. Embora mais verosímil, o critério das 10 tutorias de doutoramento, parece-me, igualmente, de difícil alcance por parte de um jovem investigador.

Sabendo que a actual ministra provém da carreira académica e científica, certamente que terá as suas unidades de medida para propôr tais metas. Mas, conhecendo nós, o esforço e tempo necessários para a produção de um artigo científico com a qualidade exigível para publicação; mesmo os mais dedicados e frenéticos jovens investigadores terão, certamente, dificuldade em atingir tal desiderato. A não ser que, não haja, de facto, o mínimo de trabalho de pesquisa, como é hábito entre nós, por parte do ministério, para saber o número de potenciais abrangidos por esta medida. E, assim sendo, avançam-se critérios de exigência tal que não se corre o risco de eventual falta de verba orçamentada para o efeito. Já que, como sabemos, as restrições orçamentais são, para este governo, imperativo categórico da sua política, de todas as medidas e da falta delas...

Nota: Só hoje (15-04-04) vi que o Professorices já havia escrito, também, sobre a questão, no momento em que redigi este post. Aqui fica a nota.

quarta-feira, abril 14, 2004

___________________________________________

Redux

___________________________________________

A má-fé soviética

As cambalhotas e os flic-flac argumentativos que políticos, jornalistas, analistas e intelectuais que defendem a intervenção americana no Iraque fazem para sustentar o insustentável, só encontra paralelo em esforço semelhante feito em tempos, por outros protagonistas, para sustentar o insustentável regime soviético.
___________________________________________

Diários (2)



Autor desconhecido, Itália, Agosto-1803

terça-feira, abril 13, 2004

___________________________________________

Abril é uma Loção da História...?

Seguindo o raciocínio humorístico de Ricardo Araújo Pereira no Gato Fedorento, confesso-me preocupado com os malabarismos semânticos que este governo está a fazer com as comemorações do 25 de Abril. A continuarmos assim e com esta coligação no poder, arriscamo-nos a que lá para 2007, as comemorações possam versar do seguinte modo: "Abril é Loção..."

Ora vejam o que diz o Grande Dicionário da Língua Portuguesa a propósito:
Loção, s.f. (do lat. lotione). Lavagem, ablução. || Limpeza de qualquer parte do corpo, com pano ou esponja impregnado de líquido.|| O líquido que se emprega nesta lavagem. || Líquido perfumado que se usa para limpar a cabeça ou a pele. || Operação que consiste em desembaraçar uma substância insolúvel das partes heterogéneas interpostas.

Digam lá que não é preocupante?...
___________________________________________


Paul Gauguin; Nave, Nave Moe; 1894

___________________________________________

Poemário

PAISAGEM

A terra é roxa
O céu é azul
A vegetação é verde-escura
Esta paisagem é cruel dura triste não obstante a variedade infinita
das formas vegetativas
Não obstante a graça inclinada das palmeiras e os penachos vistosos
das grandes árvores em flor as flores-de-quaresma

BLAISE CENDRARS (1887-1961)
Mesa de Amigos
(versões de poesia por Pedro da Silveira)
POEMÁRIO, Assírio & Alvim, 2004

segunda-feira, abril 12, 2004

___________________________________________

Bons exemplos no país real (II)

"Ouguela com vida, Entre o Caia, o Xévora e o Abrilongo

'Entre O Caia, o Xévora e o Abrilongo há um mundo de magia, entre o sonho e a realidade. Há um ambiente e uma comunidade com vida, que merecem ser estudados e protegidos'.
Ouguela é uma aldeia rural do Concelho de Campo Maior. Aqui, entre o Xévora e o Abrilongo, desde sempre que as populações viveram em comunhão com a natureza, cultivando a terra, pescando nas águas límpidas dos rios e vivendo em equilíbrio com a natureza.
Aqui ainda vivem a Abetarda, o Sisão e o Grou. Aqui as Bogas e os Barbos ainda sobem o rio para desovarem e para se alimentarem. Aqui o vimeiro e o salgueiro ainda dão a matéria prima com que os mais velhos nos ensinam a construir galritos, cestos e todo o tipo de artesanato.
Aqui lembram-se as técnicas tradicionais de trabalhar a terra, “de dar e tirar” dela a subsistência de todo um povo. Lembram-se também as “Estórias”, as alegrias e tristezas e os saberes ancestrais que compõem a memória cultural de um povo.
Aqui, com o apoio de organizações ambientais como o GEDA de Campo Maior, procurámos criar espaços vivos para o convívio com a natureza e para a educação ambiental.
Aqui, em Ouguela, Degolados e Campo Maior, procurámos estudar as artes e os saberes ancestrais, fazendo deles o ponto de partida para os ensinamentos escolares. Desta forma, os alunos tornaram-se em construtores da sua própria aprendizagem e tomaram atitudes intervenientes na defesa da sua herança cultural e ambiental.
Juntos, no âmbito do programa Ciência Viva, estudámos a fauna e a flora locais, procurando contribuir para a preservação das espécies em vias de extinção; procedemos à colocação de ninhos e ao estudo das espécies existentes em redor da aldeia; promovemos a recolha, reutilização, e reciclagem do papel e de outros produtos; a redução da produção de resíduos provenientes do consumo das sociedades modernas; a necessidade de poupança de energia e de utilização de energias renováveis.
Em Ouguela e Degolados desenvolvemos actividades de educação ambiental e de intervenção comunitária que congregaram a escola e a comunidade (em particular os idosos), recuperando os saberes tradicionais e tornando-os parte integrante da formação cívica e cultural das novas gerações.
Com estas actividades procurámos permitir a criação de espaços de troca, partilha e aprendizagem, contribuindo para a criação de uma escola inclusiva e reforçando os laços e a identificação entre ambas as instituições.
De igual modo procurámos partilhar estas actividades com os nossos parceiros europeus da Grécia, Alemanha, Roménia, Suécia, Itália e Espanha, com os quais desenvolvemos o projecto “De mãos dadas por uma escola melhor” que pretende reforçar os laços entre as diversas instituições vivas da comunidade.
A Internet e a intercomunicação permitiram transmitir para além do horizonte a história e a identidade desta comunidade, trazendo de volta mensagens de esperança que criaram uma verdadeira espiral de solidariedade para com o desejo deste povo de ver valorizada a sua cultura.
Em cada dia, em Ouguela, os alunos trabalham conscientes de que a sua riqueza cultural é valorizada pelos seus colegas de escolas distantes e sabendo que o seu trabalho de pesquisa, recolha e reconstituição das tradições é “acarinhado” por muitos “amigos” ligados à educação.
A Internet ensinou assim os alunos a aprender com os pais e com os avós, pois são esses os conteúdos que mais receptividade apresentam junto dos colegas com quem comunicam. Por outro lado, aprendendo com os seus familiares, os alunos aprenderam que podem ser eles mesmos “Aprendizes de Pigmaleão”, transmitindo preciosos conhecimentos sobre a sua cultura não só aos seus colegas alunos mas, igualmente, aos professores que carinhosamente os incentivam a continuar no seu trabalho.
Desta forma, a Internet e todos os que através dela se juntaram aos 89 professores de Ouguela, deixaram um pouco de si no processo de aprendizagem e crescimento dos alunos. Cada um dos correspondentes tornou-se assim num actor privilegiado da afirmação de uma comunidade e contribuiu de forma decisiva para o crescimento destes alunos como elementos activos, críticos, participativos e conscientes da sua riqueza cultural, ambiental, histórica e paisagística. Riqueza essa que, assim, se afirmará como meio privilegiado para a formação das futuras gerações de Ouguelenses".


(António Mendes)
___________________________________________

Democracy

It's coming through a hole in the air,
from those nights in Tiananmen Square.
It's coming from the feel
that this ain't exactly real,
or it's real, but it ain't exactly there.
From the wars against disorder,
from the sirens night and day,
from the fires of the homeless,
from the ashes of the gay:
Democracy is coming to the U.S.A.

It's coming through a crack in the wall;
on a visionary flood of alcohol;
from the staggering account
of the Sermon on the Mount
which I don't pretend to understand at all.
It's coming from the silence
on the dock of the bay,
from the brave, the bold, the battered
heart of Chevrolet:
Democracy is coming to the U.S.A.

It's coming from the sorrow in the street,
the holy places where the races meet;
from the homicidal bitchin'
that goes down in every kitchen
to determine who will serve and who will eat.
From the wells of disappointment
where the women kneel to pray
for the grace of God in the desert here
and the desert far away:
Democracy is coming to the U.S.A.

Sail on, sail on
O mighty Ship of State!
To the Shores of Need
Past the Reefs of Greed
Through the Squalls of Hate
Sail on, sail on, sail on, sail on.

It's coming to America first,
the cradle of the best and of the worst.
It's here they got the range
and the machinery for change
and it's here they got the spiritual thirst.
It's here the family's broken
and it's here the lonely say
that the heart has got to open
in a fundamental way:
Democracy is coming to the U.S.A.

It's coming from the women and the men.
O baby, we'll be making love again.
We'll be going down so deep
the river's going to weep,
and the mountain's going to shout Amen!
It's coming like the tidal flood
beneath the lunar sway,
imperial, mysterious,
in amorous array:
Democracy is coming to the U.S.A.

Sail on, sail on ...

I'm sentimental, if you know what I mean
I love the country but I can't stand the scene.
And I'm neither left or right
I'm just staying home tonight,
getting lost in that hopeless little screen.
But I'm stubborn as those garbage bags
that Time cannot decay,
I'm junk but I'm still holding up
this little wild bouquet:
Democracy is coming to the U.S.A.

(Leonard Cohen)

___________________________________________

O EXEMPLO

(The example)

Eis o exemplo que nos mostra
A borboleta,
Que em dura, áspera rocha,
Feliz, se aquieta;
Sem amiga companhia
Naquela rocha bravia.

Que o meu leito seja duro
Já não me inquieta;
Ficarei contente como
A borboleta:
Que tem ânimo e valor
Pra fazer da pedra flor.

W.H. Davies (1871-1940)
Versão de A. Herculano de Carvalho, Oiro de Vário Tempo e Lugar,
Editorial O Oiro do Dia.
___________________________________________

E o que vale isto quando comparado com a oportunidade imperdível de colocar diariamente ainda mais automóveis dentro da cidade de Lisboa?



"O ano de 1731 marca o início da construção do Aqueduto de Lisboa, sistema de captação, transporte e distribuição de água para abastecimento da cidade. Obra hidráulica da responsabilidade técnica de Manuel da Maia e Carlos Mardel, foi custeada em grande parte pelo real d'água, taxa paga pelo povo de Lisboa sobre os géneros de primeira necessidade. Daqui resulta o peso indestrutível de um património que se fez à custa de dificuldades e carências da população que, certamente já teria muitas. A sua grandeza monumental traduz-se nos seguintes números: o aqueduto principal com 18,5 km atravessa os 940m do vale da Ribeira de Alcântara com 35 arcos sendo um deles o maior arco em pedra do mundo. Tem uma rede de captação de 30km de condutas e abastece uma rede de distribuição de 12km. Completado por edifícios que abrigam as Mães de água, reservatórios e chafarizes, forma um conjunto de alto valor patrimonial pela arquitectura e a qualidade da construção, mas igualmente por ser o único sistema em «água livre» com esta dimensão e ainda por ter chegado praticamente intacto até nós, o que fundamenta e exige a sua conservação".


[O texto acima citado foi extraído do abaixo-assinado a favor da conservação deste ex-libris da cidade de Lisboa e contra a demolição de qualquer dos seus elementos ou troços]

domingo, abril 11, 2004

___________________________________________

PARA ANNE F.

Querida Anne,
O que escreves é verdade.
Os adultos agem sem pensar.
Bombas mandam atirar,
para de um país se apoderar.
Poluem o ar,
a praia e o mar.
Conduzem muito depressa,
bebem até perder a cabeça.
Separam-se os casais
ou fazem cenas teatrais.
Mas eu tenho um sonho belo:
Um dia…
de outra maneira havemos de fazê-lo!

A tua amiga
Kitty

Theo Olthuis
Tradução de Lina Cortesão
In LÁ LONGE, A PAZ , Antologia,
Edições Afrontamento, 2001
___________________________________________

Responsabilizemos o terceiro sector mas não desresponsabilizemos o Estado

Num post intitulado Associativismo ou negócio?, o Blasfémias lança um libelo sobre as associações e sobre as instituições particulares de solidariedade social (IPSS). Tem razão o Blasfémias quando menciona as deficiências de gestão e o desperdício de recursos que aí abundam. Perde toda a razão ao generalizar que aquelas entidades “mais não servem do que os interesses dos seus dirigentes, transformados em instrumento da omnipresença do Estado na vida corrente dos cidadãos”.

Em primeiro lugar, tal afirmação revela algum desconhecimento daquela realidade. O autor do post escreve a partir dos pré-conceitos da sua perspectiva política (que conhecemos) para a realidade, ao invés de buscar na realidade os argumentos para formar a sua perspectiva política sobre a questão.

De facto, não é possível atribuir, genericamente, às associações e IPSS uma subordinação aos “interesses dos seus dirigentes”. Não nego que tais situações existam, no entanto, não são generalizáveis.

Em segundo lugar, numa sociedade como a portuguesa as associações e, sobretudo, as IPSS desempenham a nível local, de proximidade aos problemas e aos cidadãos, um papel insubstituível, onde o Estado pode cada vez menos actuar directamente e onde, provavelmente, aquele papel estará cada vez mais nas mãos dos cidadãos organizados, ou de um terceiro sector das nossas sociedades. Não se trata, portanto, da “omnipresença do Estado”.

Se falamos de financiamento, devemos referir que esse financiamento Estatal é feito por comparticipação e não exclusivamente pelo Estado. Comparticipações financeiras essas que são igualmente conferidas às instituições privadas do sector com fins lucrativos. E poderiam as entidades do terceiro sector auto-sustentarem-se, num país com o nosso nível de desenvolvimento socioeconómico? A questão reside, isso sim, na necessidade de maior exigência e responsabilização de tais entidades, em matéria de administração e de gestão rigorosa dos recursos ao seu dispor. Mas essa exigência é aplicável tanto às IPSS como às empresas do sector. Ambas são deficitárias, em competências de gestão e de trabalho planeado, para uma melhor rentabilização de recursos e para uma maior eficácia e eficiência do trabalho que desenvolvem.

Acresce que os casos mais escabrosos de deficiente prestação de serviços naquele sector provêm de algumas entidades de natureza lucrativa e não das IPSS. Quando se fala, cada vez mais, de responsabilização social das empresas, porque razão seríamos apenas exigentes com as IPSS e não olharíamos também para as empresas privadas que, sendo do sector, têm responsabilidade social imediata?

No que concerne, em particular, às IPSS, o que importa, de facto, é conferir crescente capacidade de gestão modernizada a essas entidades e tal passará, necessariamente, por uma qualificação e renovação dos seus dirigentes, dos seus técnicos e restante pessoal, de modo a maximizar os resultados do seu imprescindível trabalho numa sociedade onde o Estado será cada vez menos a entidade maioritária nos sistemas de protecção social.

O que o Estado não pode, no entanto, ainda que alguns apelos e tentações caminhem nesse sentido, é desresponsabilizar-se da participação na regulação social. Por maioria de razão, numa sociedade e numa economia como a portuguesa, o Estado, tem ainda muito a fazer ao nível do investimento público no sector da acção social, da educação, da saúde, da cultura.

Por outro lado, o Estado não pode, muito menos, desresponsabilizar-se da coordenação das politicas sociais e da avaliação da sua implementação, em conjunto com os demais agentes envolvidos, nomeadamente no que concerne ao trabalho de terreno protagonizado pelas IPSS, precisamente para contrariar o desperdício de recursos e conferir eficácia ao trabalho por elas desenvolvido.

Se queremos que o Estado dê espaço à “sociedade civil”, mas impedindo que essa “sociedade civil” sirva interesses particulares e desperdice recursos; então, temos de exigir um papel mais activo (com mais presença do Estado) na fiscalização e avaliação permanente do modo como esses recursos são utilizados. Avaliação cientificamente rigorosa, mas também com o envolvimento das IPSS, de modo a que não se confunda com a fiscalização (do Estado) e seja, também, um processo de aprendizagem e de formação. Precisamente, tendo em vista a desejável melhoria da qualidade da prestação daquele serviço à comunidade e uma mais eficiente e eficaz utilização dos recursos que são de todos nós. Ou não será?

(continua)

sábado, abril 10, 2004

___________________________________________

Lisboa Abandonada

Meritório é o trabalho iniciado por Pedro Fonseca e que numa inteligente campanha promocional, há uns anos, o autor-cidadão deu a conhecer a todos quantos trabalham no campo das questões urbanas e territoriais. Aquele projecto foi ganhando forma, volume e substância e é já, neste momento, um instrumento incontornável para quem estude ou trabalhe sobre Lisboa. Ao Pedro Fonseca juntaram-se outros cidadãos, interessados, que são um bom exemplo de como o exercicío activo da cidadania é, não só possível, como gratificante e cada vez mais urgente.

Lisboa Abandonada revela-nos mais um retrato do país real. Neste caso, exemplar da ausência de estratégia, por parte do trabalho autárquico em Portugal. E, que me perdoem alguns amigos, mas este retrato da Lisboa Abandonada poderia, e deveria, ter sido corajosamente enfrentado, pelo menos desde que o país passou a ter condições estruturais para o enfrentar. Isto é, desde os tempos em que a autarquia passou a ser liderada pelo PS no início da década de 1990.

A CML desenvolveu, ainda no ínicio do mandato de Jorge Sampaio, um pioneiro trabalho em Portugal, de planeamento estratégico. Faltou, depois, coragem (ou vontade?) política para levar o Plano Estratégico à prática. E a responsabilidade dessa inversão de rumo deve ser imputada aos, então, autarcas do Partido Socialista.

Hoje, a CML é o exemplo paradigmático da falta de estratégia na acção. Limitando-se a gerir as oportunidades, de forma errática e casuística, sem planeamento, com absoluta incompetência e arrogância perante os saberes técnicos. Uma lógica populista subordinada a uma gestão balofa de imagem mediática, sem conteúdo e dependente de caprichos pessoais, na linha da mais rasteira noção do que é a política.

___________________________________________

Lost in translation (II)

De Carlos Medina Ribeiro recebemos por email o endereço onde podemos consultar os seus textos da rubrica "Carta Branca", no Expresso, bem como a foto, mencionados no nosso post da passada semana.
___________________________________________

Bons exemplos no país real

Do professor António Mendes da escola do ensino básico, primeiro ciclo, de Ouguela, em Campo Maior, recebi um simpático email a propósito do Forum Comunitário.

Aquela escola apenas tem cinco alunos e, no entanto, com um professor assim, desenvolve um meritório projecto ao nível do ensino e do trabalho comunitário.

Ouguela vive o problema de tantas localidades do interior do país: desvitalização, envelhecimento e desertificação populacional. Sabemos, como numa lógica de estrita racionalidade económica, de curto prazo, é um factor de desperdício de recursos, ter uma escola com um professor e cinco alunos. Mas a solução é fechar escolas porque nestes contextos desvitalizados têm um escasso número de alunos? Ou, alternativamente, deveria ser olharmos para o modelo de desenvolvimento territorial que estamos a construir e, enquanto é tempo, começar a reverter esta tendência?

Projectos como o de Ouguela, merecem ser acarinhados e não só apoiados como, sobretudo, integrados em projectos mais alargados de desenvolvimento local, em tantas regiões do interior do país, como aliás, com outra configuração, no seio das próprias áreas metropolitanas.

Pensar a rentabilização de recursos, nestes contextos, numa escala intermunicipal, valorizando as potencialidades locais, como sejam recursos humanos insubstituíveis, articulando iniciativas para a promoção da fixação e atracção de população, constituição progressiva de massa crítica local que permita formar lideranças e agenciar capacidades e competências para criar uma dinâmica de desenvolvimento e requalificação destes territórios. Aí sim, deveriam residir as preocupações, nomeadamente, das políticas públicas para o desenvolvimento harmonioso do país.

A esta questão voltaremos, de forma mais detalhada e aprofundada, neste espaço, já que ela foi uma das razões que presidiu à criação deste Fórum Comunitário.

Por agora, queria realçar o exemplo de projectos como o da Comunidade de Ouguela, que deveriam merecer outra atenção, da parte das iniciativas públicas ou privadas, para um desenvolvimento menos assimétrico e mais pautado pela coesão social e territorial do país.

São exemplos como o que recebi do professor António Mendes - dando conta do seu trabalho com a comunidade de Ouguela e da utilização da Internet como meio instrumental para a construção desse projecto, procurando contrariar a tendência dominante para o isolamento e aproveitando bem as oportunidades da rede -, que me fazem acreditar na razão de ser deste Forum Comunitário.

sexta-feira, abril 09, 2004

___________________________________________

Retratos de um país real

Ao que consta, em Braga, um edifício construído sobre o leito de um rio está a afundar-se, tendo já cedido cerca de vinte centímetros (!) e apresentando uma inclinação no sentido poente-nascente, qual Torre de Pizza.

Perante tal insólito, qual a postura do presidente da edilidade?

A de solicitar inquérito sobre as condições em que a sua autarquia concedeu licença de construção e licença de habitabilidade a um edifício assim construído?

A de assumir todas as responsabilidades pelo licenciamento de um edifício em tal situação e de imediato encontrar uma solução de realojamento até viabilizar uma saída aceitável para o problema, quiça, em conjunto com os proprietários e com a empresa contrutora?

Nada disso. Segundo o Expresso (09,Abril,04), o edil, "admite 'ajudar os moradores' na estabilização do edifício e pedir um estudo ao LNEC"...

Portanto, senhores moradores, toca a fazer fila, arregaçar mangas e mãos à parede para estabilizar a Torre de Pizza.

___________________________________________

Ainda (e sempre) o elogio da Democracia

No Expresso desta semana, Rui da Câmara e Sousa, que surge identificado como Empresário, escreve um excelente texto intitulado "Naquela noite senti receio", a propósito, ainda, da questão do "voto em branco" e do mais recente livro de Saramago.

Mesmo aos que não compram o Expresso, aconselharia que o pedissem de empréstimo a um familiar, amigo ou vizinho só para lerem aquele texto. Vale a pena...

___________________________________________




Em Abril, um livro abre avenidas de Liberdade
___________________________________________

Late Night Posts

Agradeço a amabilidade de Vital Moreira do Causa Nossa, por me ter alertado para o facto dos "permanent links" do Forum Comunitário não estarem operacionais e de João Vasconcelos Costa do Professorices, por me ter avisado de que um "aportuguesamento" de códigos estava a impedir a leitura do blog para quem usa o Mac e o browser Safari. Pelos vistos que o Internet Explorer é mais receptivo à diversidade linguística. Nem tudo é mau no Império de Uncle Bill...

Ambos os problemas estão já resolvidos. Um deles após longas horas de "tentativa e erro".

Podem agora, linkar à vontade para os posts do Forum Comunitário sem ser necessário referir os respectivos títulos, mesmo os do Maclub também já podem ler e divulgar o FC...

quinta-feira, abril 08, 2004

___________________________________________

Words of Wisdom

Acabei de furtar esta frase do Mundo da Claudia, onde julgo que surge a partir de um mecanismo de geração automática de quotations designado Words of Wisdom (se assim não fôr, paciência, o crime já foi cometido, só me resta voltar, com prazer, ao local do crime):

"The power of accurate observation is commonly called cynicism by those who have not got it". - George Bernard Shaw

___________________________________________

A democracia e as fronteiras entre negócios e política

Ao contrário do que ironiza Vital Moreira no Causa Nossa, não me parece que possamos afirmar que "um dos prodígios da democracia é o fulgurante sucesso de certos políticos nos negócios...".

Bem pelo contrário, parece-me que nos regimes totalitários é bem menos transparente essa relação e bem mais produtora de promiscuidade duvidosa. Ao menos em democracia essa mobilidade de competências pode estar associada ao reconhecimento de que o mundo da administração da coisa pública e o mundo da gestão empresarial não são, necessariamente, universos estanques. Pelo menos do ponto de vista do saber-fazer e competência profissional que ambos exigem. Ao invés do que uma visão ultrapassada tanto do Estado como da iniciativa empresarial, por vezes nos quer fazer crer. Por exemplo, nos discursos anti-políticos e anti-política de alguns dos nossos mais reconhecidos empresários. Como se um mundo moderno sem Estados fosse não só possível, como desejável.

Sem dúvida que devemos exigir, como cidadãos, a maior transparência daquela relação. Isso mesmo faz a superioridade moral da democracia face aos regimes totalitários. Mas, por favor, não culpemos agora a democracia de todos os problemas contemporâneos. Como se a fonte "de todos os males" tenha origem na democracia e não na sua ausência de alguns procedimentos por parte de alguns dos seus agentes e agências.

Começa a ser preocupante o enviezamento do alvo da crítica...que apenas poderá interessar, precisamente, aqueles que anseiam por uma "alternativa à democracia"...

quarta-feira, abril 07, 2004

___________________________________________

Sobre o "endogamismo" da blogosfera

O pior que poderia acontecer à blogosfera seria não ultrapassar uma fase de endogamia. No sentido em que, ao invés de debater sobre os mais diversos problemas e temas do mundo e das experiências pessoais dos que o compõem, em todas as suas dimensões, permanecesse enredada em minúsculas questiúnculas endogâmicas. Um universo em que se limitasse a falar de si própria e dos seus próprios problemas, como se não houvesse mundo para além do umbigo da dita blogosfera.

Pouco me importa se uns são de direita e outros de esquerda. Se uns preferem o registo instrospectivo, pessoalizado, poético, ou mesmo intimista e outros, em alternativa, alinham pelo discurso analítico, crítico, político, racional. Acho que todos eles fazem falta à blogosfera. Não é o mundo composto de tudo isso? Porque haveria a blogosfera de ser um mundo "à parte", ao invés de um reflexo espelhar, ou uma amostragem do mundo real?

Sabemos bem que alguns bloggers parecem querer marcar o passo, traçar as tendências, acentuar divisões, afirmar estilos e até, eventualmente, protagonizar a liderança na inovação. Mas será que isso nos deve preocupar? Não será, uma vez mais, também aí, a blogosfera um espelho da "realidade real". Do mundo "lá fora"?

Claro que a blogosfera também é um espaço público e, como tal, os seus actores aí representam um papel. Teatralizam. Mas não é isso, também, que os actores sociais fazem no seu quotidiano? Não são as identidades que construímos e reconstruímos no nosso quotidiano e no nosso trajecto de vida, também, algo que se torna legível mediante um processo de representação em público? No sentido exacto que lhe atribuiu o sociólogo americano Erving Goffman em Relations in Public e em Self-Representation in Everyday Life?

Tais processos não são, parece-me, exclusivamente accionados pela subjectividade dos discursos personalizados ou intimistas, reveladores de opções de vida, gostos, apreciações e julgamentos estéticos como, igualmente, por aqueles que resultam da pura razão crítica, analítica e sócio-centrada.

É verdade que essas dicotomias existem, de facto, e com elas temos de lidar. Mas não será que o reconhecimento da complexidade da realidade nos deveria conduzir ao entrecruzamento dos pólos dessas dicotomias, já que a realidade, de facto, é sempre mais complexa do que as categorias com as quais a analisamos?

No Forum Comunitário procuraremos - assim o consigamos - dinamitar as fronteiras artificiais e dicotómicas com as quais nos habituámos a pensar o mundo e a classificar as estruturas, as práticas e as representações dos seus protagonistas.

O que não gostaríamos, de todo, é que a blogosfera ficasse presa no emaranhado de uma rede restrita e egocentrada, um micro-mundo "à parte", como se de um universo endogâmico se tratasse.

Como sabemos, os sistemas, ou subsistemas, fechados sobre si mesmos, perdem diversidade, dinâmica, capacidade de inovação e renovação e, desse modo, tendem à desvitalização e à auto-destruição.

___________________________________________

Diários





Anne Frank (1929-1945)


___________________________________________


.

Em Abril a Utopia Realizada a cada dia. Ilustração de António Pimentel.



___________________________________________

ESPERANÇA

(Speranza)

O gigantesco roble que abatido
jazeu o Inverno todo no chão mole,
mostrando na medula, como em rol,
que há cento e noventa anos foi nascido,

mal chega Abril, quando toda a corola
a mão da Primavera abre, sorrindo,
dos seus cortados nós se desenrola
o sonho de inda ser frondoso e lindo.

Abrolha e sonha (alheio à sorte escura)
A eterna e azul abóbada serena,
com hóspedes que cantam e esse forte

gemer do vento, na estação futura.
Não sei por que me causa tanta pena
tal moribundo que recusa a morte!

Guido Gozzano (1883-1916)
Versão de A. Herculano de Carvalho, Oiro de Vário Tempo e Lugar,
Editorial O Oiro do Dia.


___________________________________________

Subscrevo

Subscrevo inteiramente e com a devida vénia ao autor, transcrevo aqui este post, que também é uma boa forma de comemorar o 25 de Abril. Porque somos insaciáveis de Democracia e em Cuba de Democracia há mesmo Fome. Reproduzo o post d'A Natureza do Mal: "Parece que Saramago acha que a democracia se está a auto-destruir. Concordo. A auto destruir e a não se defender dos ataques. Quando, por exemplo, um Prémio Nobel da Literatura, para condenar a ditadura cubana tem de medir as palavras, a democracia está a autodestruir-se".

Esta medição das palavras pode ler-se no Público

segunda-feira, abril 05, 2004

___________________________________________

O elogio da blogosfera

Em Portugal o elogio não é socialmente correcto. Certamente muitos estarão em desacordo comigo, porém é o que penso. Entre nós é mais fácil dizer mal de alguém ou de algum feito, obra, projecto ou iniciativa, do que elogiar as qualidades, virtudes, beleza, competência, sucesso, de alguém ou de alguma coisa.

Também concordo que isto é um pouco "filosofia de senso comum", mas é também disso que a vida é feita e este blog não será apenas composto por textos de análise científica, comentário político ou escrita maturada por longas horas de reflexão sociológica. Talvez venha a ser, sobretudo, o contrário disso mesmo.

Gostaria de trazer aqui, também, futuramente, as reflexões partilhadas de alguns colegas sobre o nosso campo de trabalho científico, técnico e mesmo pedagógico. Julgo que, numa época em que a voracidade de um quotidano cada vez mais veloz e devorador do tempo lento da reflexão aprofundada, uma ferramenta como os blogs poderiam bem ser um equivalente funcional de outros espaços e tempos que deixámos para trás, no processo que conhecemos de mudança societal, das décadas mais recentes.

Não sei, por agora, se alguém aceitará este desafio. Mas independentemente disso, o Forum Comunitário manter-se-á, enquanto achar que ele se justifica, com os propósitos para que foi criado.

Pelo menos o desafio, que a mim mesmo lancei, procurar-se-á levar até onde ele próprio para mim fizer sentido. Esse desafio individual foi crescendo à medida que, recentemente, fui tomando contacto com a blogosfera e lhe fui descobrindo as potencialidades que, a diversos níveis, a meu ver, fazem dos blogs uma das ferramentas mais ajustadas para combinar os elementos do que me parece ser um dos traços distintivos do mundo para o qual estamos a caminhar a passos largos: crescentes possibilidades de afirmação individualizada das opções de vida, trajectos e inserções sociais (não isentas do crescimento dos riscos associados às escolhas) a par do reforço do crescimento das múltiplas, diversificadas e complexas redes de comunicação, conectando indivíduos e grupos, sustentando relacionamentos sociais, criando participação cívica, iniciativa empreendedora, inovação social, económica e tecnológica.

Tenho encontrado, em muitos dos blogs que com regularidade consulto, sinais claros de que caminhamos naquela direcção. Entre uma lista, não muito extensa, que fui seleccionando para os meus favoritos, destaco, embora por razões descoincidentes, alguns. Este é um elogio sincero, porém interessado. Mas podem, também, ignorá-lo olimpicamente, se assim o entenderem, porque continuarei aqui, blogando, e nos vossos blogs lendo, quase sempre com fruição e prazer, os vossos textos.

Em primeiro lugar destaco o Barnabé, o meu blog preferido, pela qualidade geral dos textos, pelo humor inteligente, pela diversidade dos contributos e pela massiva e destronante fluência do número de posts inseridos.

Em segundo lugar, refiro o Causa Nossa, onde pontuo o gosto, interesse e admiração com que leio as análises de Vital Moreira (que em tempos teve a amabilidade de publicar um comentário que lhe enviei por email). Também leio com atenção e igual gosto outros participantes menos regulares como Luís Nazaré [com o qual estou muito de acordo face à polémica com Vital sobre "a descentralização em curso" - a este tema vou dedicar espaço aqui neste Forum], Ana Gomes, ou Maria Manuel Leitão Marques.

Em terceiro lugar, realço a qualidade da escrita e a - tantas vezes certeira e quase sempre mordaz - crítica do jornalista João Morgado Fernandes do Terras do Nunca.

Em quarto lugar enalteço o cuidado formal e estético e a substância dos textos de Ivan Nunes e o modo como espraia a sua perspectiva original e poética da vida e do mundo em A Praia.

Em quinto lugar refiro Alguns Relativos do País do mesmo nome, que leio regularmente com atenção e interesse.

Em sexto lugar menciono um blog que fala dos Tempos que Correm na perspectiva de Miguel Vale de Almeida, que leio igualmente com frequência e com interesse.

Por fim o Abrupto, que teve, também, a amabilidade de incluir o comentário que lhe remeti por email (a propósito de utentes e consumidores discutidos no Abrupto e no Causa Nossa). Quando o seu autor desce dos mistérios sondáveis de planetas e cometas dos Novos Descobrimentos, aos mistérios insondáveis deste mundo terreno, leio com interesse as suas análises de uma escrita límpida e agradável sobre quase tudo. Umas vezes encontro sintonia de perspectiva e outras nem por isso. Sempre, no entanto, com consideração intelectual pela sua autonomia de pensamento e cultura literária, histórica e política. Se não estou enganado José Pacheco Pereira ocupa um merecido lugar de ideólogo guru do lado direito da blogosfera. [Agora estraguei tudo...]. Publicarei em breve um comentário aos seus posts sobre "A Esquerda e a Direita", que já tenho na forja...

domingo, abril 04, 2004

___________________________________________

Lost in Translation

Não resisti a trazer para aqui uma nota humorística incluída num artigo de opinião do Expresso desta semana da autoria de Carlos Medina Ribeiro (sem possiblidade de link para o Expresso Online).
A propósito de outras questões de dificuldades eventuais de tradução, ironiza o autor que também uma marisqueira nacional evidencia claras dificuldades da mesma índole ao colocar o seguinte anúncio bilingue na sua porta:

VENDEMOS PERCEBES/WE SELL UNDERSTANDS

O autor refere que poderá enviar a fotografia do anúncio a quem lha solicitar. Aqui fica o endereço que torna público no Expresso: medina.ribeiro@netcabo.pt
___________________________________________

A Democracia e as suas alternativas

Um colega, Prof. João de Freitas Branco, escreve no Expresso desta semana um artigo de opinião, em que trata um dos temas que vem merecendo a atenção tanto dos blogs, como da imprensa, ou mesmo dos circuitos académicos e que está também subjacente à questão do "apelo ao voto em branco": a democracia, a sua crise, ou até mesmo o seu verdadeiro sentido hoje. Uma vez mais parece-me que estamos a entrar por um caminho preocupante.

Concordo com os motivos da indignação do artigo e com a conclusão que, felizmente, o seu autor retira na parte final do mesmo. Discordo em absoluto com o título: A Democracia contra os Cidadãos (link indisponível para o Expresso online). Tal como discordo da ideia de que há várias formas de democracia. A Democracia é um regime politico de princípios e regras que são universais. A ideia de que umas democracias são mais "musculadas" ou mais populares, ou mais democráticas do que outras, em si mesma, não me parece fazer sentido. Aceito a ideia de que em muitos países e até mesmo em Portugal existem diversos exemplos de que a Democracia não é respeitada nas suas regras e princípios. Existe mesmo um défice de uma cultura de democraticidade na sociedade portuguesa. Esse défice, parece estar, preocupantemente, a agravar-se. Isso porém não nos deve levar à crítica e, sobretudo, à refutação "desta democracia". Pela simples razão de que a alternativa não é "outra democracia" mas sim a sua ausência. O facto de alguns agentes, políticos ou outros, desenvolverem na sua acção práticas pouco democráticas e adoptarem mesmo uma postura de decisão e exercício do poder de modo autoritário, não significa que o problema esteja na Democracia mas, pelo contrário, na sua ausência dos comportamentos desses agentes.

Acresce que posturas como a que o governo terá tido face à edificação do complexo ministerial da justiça em Caxias, existem um pouco por todo o país, a nível autárquico, protagonizadas não apenas por eleitos do PSD ou do PP, como também do PS ou do PCP. O problema não está na Democracia, mas sim no facto desses agentes do poder democrático não terem percebido (ou não quererem perceber) que sobre eles pesa a responsabilidade que advém, precisamente, do facto de terem sido democraticamente eleitos e, como tal, terem um dever de "prestação de contas", de consulta, audição e auscultação dos eleitores, nas decisões que tomam e no modo como exercem um poder que lhes é conferido democraticamente pelos eleitores. Isto é, pelos cidadãos, fazendo-os, assim, participar democraticamente dessas decisões.

A anunciada "crise das democracias representativas" é preocupante e deve merecer a nossa precaução e actuação no sentido, não de criticar ou negar "esta democracia", mas sim de exigir mais e melhor funcionamento das regras e princípios do regime democrático. Um papel mais activo e responsável de todos nós como cidadãos é - estou de acordo com a conclusão do artigo - o caminho. Diria mesmo, o único caminho.